terça-feira, 9 de agosto de 2016


O VISCONDE CORTADO AO MEIO- ÍTALO CALVINO

   "Havia uma guerra contra os turcos. O visconde Medardo di Terralba, meu tio, cavalgava pelas planícies da Boêmia rumo ao acampamento dos cristãos. Acompanhava-o um escudeiro chamado Curzio. As cegonhas voavam baixo, em bandos brancos, atravessando o ar opaco e parado. — Por que tantas cegonhas? — perguntou Medardo a Curzio —, para onde estão voando? Meu tio acabava de chegar, se alistara havia pouco, para agradar a alguns duques, nossos vizinhos, empenhados naquela guerra. Munira-se de um cavalo e de um escudeiro no último castelo em mãos cristãs, e ia apresentar-se ao quartel imperial. — Estão voando para os campos de batalha — disse o escudeiro, sombrio. — Vão nos acompanhar por todo o caminho. O visconde Medardo ficara sabendo que naquelas terras o voo das cegonhas é sinal de boa sorte; e queria mostrar-se alegre por vê-las. Mas, a contragosto, sentia-se inquieto. — O que pode atrair as pernaltas aos campos de batalha, Curzio? — perguntou. — Agora, também elas comem carne humana — respondeu o escudeiro —, desde que a carestia tornou os campos áridos e a estiagem secou os rios. Onde há cadáveres, as cegonhas, os flamingos e os grous substituíram os corvos e os abutres. Meu tio se achava então na primeira juventude: a idade em que os sentimentos se misturam todos num ímpeto confuso, ainda não separados em bem e mal; a idade em que cada experiência nova, também macabra e desumana, é toda trepidante e efervescente de amor pela vida. — E os corvos? E os abutres? — perguntou. — E as aves de rapina? Onde foram parar? — Estava pálido, mas seus olhos cintilavam. O escudeiro era um soldado de pele escura, bigodudo, que nunca erguia os olhos. — À força de comer as vítimas da peste, a peste os atacou também. — E apontou com a lança certas moitas escuras que a um olhar mais atento se revelavam não de plantas, mas de penas e pés ressecados de aves de rapina. — Assim, nem dá para saber quem morreu antes, se a ave ou o homem, e quem se lançou sobre o outro para esganá- -lo — disse Curzio. Para fugir da peste que exterminava as populações, famílias inteiras tinham se encaminhado para os campos, e a agonia havia golpeado a todos ali. Em montes de carcaças, espalhadas pela planície árida, viam-se corpos de homens e mulheres, nus, desfigurados pelas marcas da peste e, coisa a princípio inexplicável, penugentos: como se daqueles braços macilentos e costelas tivessem crescido penas pretas e asas. Eram as carcaças de abutres misturadas com as sobras deles. O terreno já ia mostrando sinais de batalhas. A marcha se tornara mais lenta porque os dois cavalos topavam nos restos e lombadas. — O que está acontecendo com nossos cavalos? — perguntou Medardo ao escudeiro. — Senhor — respondeu ele —, nada desagrada tanto aos cavalos quanto o fedor das próprias tripas. A faixa de planície que atravessavam achava-se de fato cheia de carcaças equinas, algumas para cima, com os cascos voltados para o céu, outras de bruços, com o focinho enfiado na terra." Pág. 11-12. 

Disponível:http://www.companhiadasletras.com.br/trechos/80172.pdf. Acesso:09.08.16



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