sábado, 11 de junho de 2016


"Se eu fosse eu"
Clarice Lispector

“O que eu sinto eu não ajo.
O que ajo não penso.
O que penso não sinto.
Do que sei sou ignorante.
Do que sinto não ignoro.
Não me entendo
E ajo como se
Me entendesse.”   
                          Clarice Lispector
   
                         Bem no Fundo

           Paulo Leminski
No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora 
e outros pequenos probleminhas.



Apagar-me


Apagar-me 
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme.

Eu

Eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora 
quem está por fora
não segura
um olhar que demora 
de dentro de meu centro
este poema me olha



Amor Bastante
Quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante basta um instante
e você tem amor bastante um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto.

Ali


ali

ali
se 
se alice
ali se visse
quanto alice viu
e não disse 
se ali
ali se dissesse
quanta palavra
veio e não desce 
ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece.



Um homem com uma dor

Um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegasse atrasado
andasse mais adiante.


Acordei Bemol

Acordei bemol
tudo estava sustenido 
sol fazia
só não fazia sentido.


um bom poema leva anos
 cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade,
eu e você, caminhando junto.


nunca cometo o mesmo erro duas vezes
 já cometo duas
 três
quatro
cinco
seis
até esse erro aprender que só o erro tem vez.



      A Bola
Luiz Fernando Veríssimo
O pai deu uma bola de presente ao filho. Lembrando o prazer que sentira ao ganhar a sua primeira bola do pai. Uma número 5 sem tento oficial de couro.
Agora não era mais de couro, era de plástico. Mas era uma bola.
O garoto agradeceu, desembrulhou a bola e disse "Legal!". Ou o que os garotos dizem hoje em dia quando gostam do presente ou não querem magoar o velho. Depois começou a girar a bola, à procura de alguma coisa.
- Como é que liga? - perguntou.
- Como, como é que liga? Não se liga.
O garoto procurou dentro do papel de embrulho.
- Não tem manual de instrução?
O pai começou a desanimar e a pensar que os tempos são outros. Que os tempos são decididamente outros.
- Não precisa manual de instrução.
- O que é que ela faz?
- Ela não faz nada. Você é que faz coisas com ela.
- O quê?
- Controla, chuta...
- Ah, então é uma bola.
- Claro que é uma bola.
- Uma bola, bola. Uma bola mesmo.
- Você pensou que fosse o quê?
- Nada, não.
O garoto agradeceu, disse "Legal" de novo, e dali a pouco o pai o encontrou na frente da tevê, com a bola nova do lado, manejando os controles de um videogame. Algo chamado Monster Baú, em que times de monstrinhos disputavam a posse de uma bola em forma de blip eletrônico na tela ao mesmo tempo que tentavam se destruir mutuamente.
O garoto era bom no jogo. Tinha coordenação e raciocínio rápido. Estava ganhando da máquina. O pai pegou a bola nova e ensaiou algumas embaixadas. Conseguiu equilibrar a bola no peito do pé, como antigamente, e chamou o garoto.
- Filho, olha.
O garoto disse "Legal" mas não desviou os olhos da tela. O pai segurou a bola com as mãos e a cheirou, tentando recapturar mentalmente o cheiro de couro. A bola cheirava a nada. Talvez um manual de instrução fosse uma boa ideia, pensou. Mas em inglês, para a garotada se interessar.