quarta-feira, 16 de março de 2016

                   
Tão sutilmente em tantos breves anos


Tão sutilmente em tantos breves anos
foram se trocando sobre os muros
mais que desigualdades, semelhanças,
que aos poucos dois são um, sem que no entanto
deixem de ser plurais:
talvez as asas de um só anjo, inseparáveis.
Presenças, solidões que vão tecendo a vida,
o filho que se faz, uma árvore plantada,
o tempo gotejando do telhado.
Beleza perseguida a cada hora, para que não baixe
o pó de um cotidiano desencanto.

Tão fielmente adaptam-se as almas destes corpos
que uma em outra pode se trocar,
sem que alguém de fora o percebesse nunca.

O texto acima foi extraído do livro "Secreta Mirada", Editora Mandarim - São Paulo, 1997, pág. 151.

Grandes escritores(as):Vida e obra
Lya Luft


 "Não existe isso de homem escrever com vigor e mulher escrever com fragilidade. Puta que pariu, não é assim. Isso não existe. É um erro pensar assim. Eu sou uma mulher. Faço tudo de mulher, como mulher. Mas não  sou uma mulher que necessita de ajuda de um homem. Não necessito de proteção de homem nenhum. Essas mulheres frageizinhas, que fazem esse gênero, querem mesmo é explorar seus maridos. Isso entra também na questão literária. Não existe isso de homens com escrita vigorosa, enquanto as mulheres se perdem na doçura. Eu fico puta da vida com isso. Eu quero escrever com o vigor de uma mulher. Não me interessa escrever como homem."

Lya Luft
 nasceu no dia 15 de setembro de 1938, em Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul.

Por se tratar de cidade de colonização alemã, as crianças, em quase sua totalidade, falavam alemão, e os livros utilizados nas escolas vinham da Alemanha. Com onze anos, Lya decorava poemas de Goethe e Schiller.
Posteriormente, estudou em Porto Alegre (RS), onde se formou em pedagogia e letras anglo-germânicas.
Iniciou sua vida literária nos anos 60, como tradutora de literaturas em alemão e inglês. Lya Luft já traduziu para o português mais de cem livros. Entre outros, destacam-se traduções de Virginia Wolf, Reiner Maria Rilke, Hermann Hesse, Doris Lessing, Günter Grass, Botho Strauss e Thomas Mann. Ela diz que traduzir é sua verdadeira profissão. E que faz tradução para ganhar dinheiro. Mas também porque gosta. Um trabalho que exige respeito. Seu desejo é aproximar o escritor estrangeiro do leitor brasileiro. Confessa que não pode ser inteiramente fiel, porque pode-se correr o risco de ninguém entender nada. Mas não faz um carnaval em cima do texto alheio, não inventa, não cria frases que não existem.
Conheceu Celso Pedro Luft, seu primeiro marido,  quando tinha 21 anos. Ele tinha quarenta. Era irmão marista. Foi numa prova de vestibular. Achou-se ridícula quando pensou: esse é o homem da minha vida! O irmão marista tirou a batina para casar com ela em 1963.
Nessa paixão, começou a escrever poesia. Os primeiros poemas foram reunidos no livro "Canções de Limiar" (1964).
Tiveram três filhos: Suzana, em 1965; André, em 1966; e Eduardo, em 1969.
Em 1972 lança mais um livro de poemas, "Flauta Doce".
Em 1976, escreveu alguns contos e mandou para Pedro Paulo Sena Madureira, que era editor da Nova Fronteira. Pedro Paulo respondeu dizendo que os contos eram todos “publicáveis”. Pedro Paulo, no entanto, aconselhou Lya a escrever um romance, dizendo que ela era romancista. Dois anos depois ela escreveu "As Parceiras".
Em 1978 lança seu primeiro livro de contos, "Matéria do Cotidiano".
A ficção entrou em sua vida dois anos depois de um acidente automobilístico quase fatal em 1979. Como teve uma visão mais próxima da morte, diz a autora que começou a fazer tudo que evitava.
Primeiro foram crônicas, com o lançamento de "As Parceiras", em 1980, e "A Asa Esquerda do Anjo", em 1981. Textos amenos. Uma espécie de fingimento de que na vida tudo é bom. A morte é encarada como uma coisa normal. Mas gostaria que todos os seus amigos fossem eternos. Mesmo assim, acha a morte uma coisa mágica.
Em apenas oito anos Lya Luft sofreu duas perdas grandes demais. Dos 25 aos 47 anos foi casada com Celso Pedro Luft. Separou-se dele em 1985 e foi viver com o psicanalista e escritor Hélio Pellegrino, que morreu três anos depois. Em 1992 voltou a casar-se com o primeiro marido, de quem ficou viúva em 1995.
A escritora é conhecida por sua luta contra os estereótipos sociais. "Essas coisas que obrigam as pessoas a ser atletas. Hoje é quase uma imposição: a ordem é fazer sexo sem parar, o tempo todo. A ordem é não fumar, não beber. É essa loucura o dia inteiro na cabeça. Quem não for resistente acaba enlouquecendo. E a vida fica para trás. Hoje as pessoas estão sofrendo muito. Um sofrimento absolutamente desnecessário. Especialmente as mulheres que fazem plástica logo que vêem uma ruga no rosto. Plásticas de inteira inutilidade".
Lya Luft deixa claro que nada tem contra as cirurgias plásticas, mas contra o rumo disso tudo. "Na ambição de serem sempre jovens, as mulheres acabam perdendo o próprio rosto. São os falsos mitos da juventude para sempre. E isso também inclui a febre atual da mídia, particularmente nas revistas femininas. Só se fala como se pode ter vários orgasmos numa única noite. Só se fala em como a mulher deve agir para segurar seu homem pelo sexo, especialmente o oral. São fórmulas de um mundo conturbado, que foge ao afeto, distante de qualquer felicidade. Essa é outra coisa para o enlouquecimento. Em todo lugar, o que existe é a supervalorização do sexo. Quem não estiver fazendo sexo sem parar o tempo todo passa a ser anormal. Muita gente fica complexada porque não consegue vários orgasmos numa noite. É tudo uma imposição".
A autora diz ser uma constatação precária dizer que ela escreve sobre mulheres. Mulheres não são seus personagens exclusivos. “Escrevo sobre o que me assombra”, observa. E nisso está a infância. O importante é o compromisso com a dignidade. Toda a sua obra poderia ser resumida — como afirma — num livro de indagações.
Em 1982 publica "Reunião de Família", e em 1984 outros dois livros: "O Quarto Fechado" e "Mulher no Palco". "O Quarto Fechado" foi lançado nos E.U.A. sob o título "The Island of the Dead".
Quem é Lya Luft? Uma mulher gaúcha, brasileira, que faz cada vez mais, aos sessenta e um anos, o que desde os três ou quatro desejava fazer: jogar com as palavras e com personagens, criar, inventar, cismar, tramar, sondar o insondável. "Tento entender a vida, o mundo e o mistério e para isso escrevo. Não conseguirei jamais entender, mas tentar me dá uma enorme alegria. Além disso, sou uma mulher simples, em busca cada vez mais de mais simplicidade. Amo a vida, os amigos, os filhos, a arte, minha casa, o amanhecer. Sou uma amadora da vida. O que você nunca vai esquecer? Escutar o vento e a chuva nas árvores do imenso jardim que cercava a casa de meu pai, na minha infância". Puro maravilhamento. O que lhe causa repugnância? Preconceito, hipocrisia. Vale a pena escrever? "Não escrevo porque “valha a pena”, mas porque me faz feliz, simplesmente". O que falta à literatura brasileira? "Nada, não falta nada. Ela é o que é, simplesmente, cheia de graça, desgraça, florescente, múltipla, lutando com a crise econômica que atinge também as editoras, mas, como não se escreve para ficar rico, tudo bem". E Deus? "Deus eu imagino como força de vida: luminosa, positiva, imperscrutável". E o Brasil? Brasil cujo jeito é parecer não ter jeito. "Não quero jamais ter de morar longe dele. Aqui tudo é possível. E tanto está ainda por fazer". O que fazer para reverter esse quadro de miséria? "Que os responsáveis por isso criem vergonha na cara". Quem não merece respeito algum de ninguém? "Todos merecem algum respeito, no mínimo compaixão". Você costuma rezar? "Não tenho nenhuma religião instituída, mas tenho uma profunda visão “religiosa”, sagrada, da natureza, das pessoas, do outro". Qual é seu momento ideal para escrever? "O momento em que meu livro quer ser escrito. Mas normalmente produzo mais de manhã bem cedo. Gosto de ver o dia nascer, aqui na minha mesa de trabalho e do meu computador". Se confessa uma mulher tímida, embora não pareça.
Em 1987 lança "Exílio"; em 1989 o livro de poemas "O Lado Fatal" e, em 1996, o premiado "O Rio do Meio" (ensaios), considerado a melhor obra de ficção do ano.
Lya Luft afirma que hoje prefere ficar quieta consigo mesma. Já casou demais. Já enviuvou demais. Não se imagina mais vivendo ao lado de ninguém. Mas não quer desprezar os encantamentos que surgem por seu caminho. Lya afirma ter sido um privilégio ter conhecido e vivido com dois homens que muito lhe ensinaram. Sua visão do masculino é muito positiva. Foram três homens, na verdade, que a influenciaram e percorreram sua vida, erguendo seu rosto, seu percurso, abrindo seus rumos: seu pai, Arthur Germano Fett, que considerava um homem culto, amigo e também solitário; seu cúmplice, Celso Pedro Luft, de quem herdou o sobrenome; e Hélio Pellegrino. Três homens inesquecíveis. Que sempre vão permanecer nas palavras, nos pensamentos, nos acenos possíveis.
Não faz tarde de autógrafos, sente-se desconfortável com isso. Não gosta de discutir teorias literárias, especialmente quando se referem à sua obra. Nunca pensou em tradição literária ou, especialmente, em tradição literária gaúcha. Não quer fazer literatura regional. Não quer ser representante de descendentes. Não quer pertencer a grupo nenhum. Quer mesmo é ser livre. Quer ficar quieta no seu canto. No livro "Secreta Mirada", lançado em 1997, ela se deixou com ela mesma e discorreu sobre temas que nunca fala em discussões literárias, em entrevistas, depoimentos.
"Sou dos escritores que não sabem dizer coisas inteligentes sobre seus personagens, suas técnicas ou seus recursos. Naturalmente, tudo que faço hoje é fruto de minha experiência de ontem: na vida, na maneira de me vestir e me portar, no meu trabalho e na minha arte/ Não escrevo muito sobre a morte: na verdade ela é que escreve sobre nós - desde que nascemos vai elaborando o roteiro de nossa vida/ O medo de perder o que se ama faz com que avaliemos melhor muitas coisas. Assim como a doença nos leva a apreciar o que antes achávamos banal e desimportante, diante de uma dor pessoal compreendemos o valor de afetos e interesses que até então pareciam apenas naturais: nós os merecíamos, só isso. Eram parte de nós./ O amor nos tira o sono, nos tira do sério, tira o tapete debaixo dos nossos pés, faz com que nos defrontemos com medos e fraquezas aparentemente superados, mas também com insuspeitada audácia e generosidade. E como habitualmente tem um fim - que é dor - complica a vida. Por outro lado, é um maravilhoso ladrão da nossa arrogância./ Quem nos quiser amar agora terá de vir com calma, terá de vir com jeito. Somos um território mais difícil de invadir, porque levantamos muros, inseguros de nossas forças disfarçamos a fragilidade com altas torres e ares imponentes./ A maturidade me permite olhar com menos ilusões, aceitar com menos sofrimento, entender com mais tranqüilidade, querer com mais doçura./ Às vezes é preciso recolher-se".
Em 1999 a escritora lança o livro "O Ponto Cego".
“A vida é maravilhosa, mesmo quando dolorida. Eu gostaria que na correria da época atual a gente pudesse se permitir, criar, uma pequena ilha de contemplação, de autocontemplação, de onde se pudesse ver melhor todas as coisas: com mais generosidade, mais otimismo, mais respeito, mais silêncio, mais prazer. Mais senso da própria dignidade, não importando idade, dinheiro, cor, posição, crença. Não importando nada”.
Bibliografia:
No Brasil:

- Canções de Limiar, 1964
- Flauta Doce, 1972
Matéria do Cotidiano, 1978
As Parceiras, 1980
A Asa Esquerda do Anjo, 1981
Reunião de Família, 1982
O Quarto Fechado, 1984
- Mulher no Palco
, 1984
- Exílio, 1987
O Lado Fatal, 1989
- O Rio do Meio
, 1996
Secreta Mirada, 1997
O Ponto Cego, 1999
- Histórias do Tempo, 2000
- Mar de dentro, 2000

(Todos os livros foram publicados pelas Edições Siciliano e Mandarim, São Paulo - SP)

- Perdas e ganhos, 2003 - Editora Record
No exterior:

- The Island of the Dead (O Quarto Fechado), E. U. A.


Os dados acima foram obtidos em livros da autora, páginas da Internet e em artigo publicado por Álvaro Alves de Faria, jornalista, poeta e escritor.

Disponível:http://www.releituras.com/lyaluft_bio.asp Acesso:16.03.16

segunda-feira, 14 de março de 2016

       
Formação do professor leitor[...]


Cristina Charão

Para ensinar seus alunos a gostar de ler, um professor precisa do quê? Material de leitura apropriado para a faixa etária da sua turma, por certo. Uma estratégia para apresentar esse material aos alunos de forma atraente e significativa, também. Mas antes de tudo isso, o professor precisa ler. O problema é que esse personagem, o professor leitor, não é facilmente encontrado nas escolas brasileiras. As políticas de formação de leitores devem atentar para essa questão, para poder garantir, assim, mais finais felizes.

Como os brasileiros em geral, os educadores demonstram dificuldades para adquirir e manter o hábito da leitura. "Mesmo os professores de literatura e da área da língua portuguesa nem sempre são leitores bastante frequentes", diz Regina Zilberman, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora nas áreas de literatura infanto-juvenil e formação de leitores. "Eles têm uma intermitência de leituras por várias razões, que não são irrelevantes: falta de tempo, falta de oportunidade, uma má formação como leitor."
O perfil docente é muito semelhante ao do leitor brasileiro, segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro. Gerente-executiva de Projetos do instituto, Zoara Failla conta que a análise em separado das respostas dadas pelos participantes que se identificaram como educadores confirma a impressão de que nossos professores são não leitores. "Só 30% deles dizem que gostam de ler", diz.
Embora a amostra específica de educadores na pesquisa seja pequena, o que impede generalizações, o esboço revelado por esta análise particular é preocupante. Inclusive porque o próprio estudo, realizado em 2011, mostrou que o docente é o principal influenciador dos hábitos de leitura. "O professor sempre foi uma figura influente, ao lado da família, mas na última pesquisa, ele foi mais citado por aqueles que gostam de ler, ultrapassando a mãe como influenciadora do hábito", relata Zoara. Para a socióloga, esse resultado é bastante compreensível considerando o perfil brasileiro. "É uma família não leitora, de baixa escolaridade, que não tem livros na sua casa, que trabalha o dia todo e não tem tempo para o lazer e a leitura, o que acaba reforçando o papel da escola na formação de leitores."
"Se o professor não é leitor, ele não vai formar leitores", afirma Regina Zilberman. "Um professor de artes não precisa ser um artista, mas deve apreciar arte. O mesmo vale para o professor da área de línguas em relação à leitura de obras literárias."
Formação

O desafio imposto às redes de ensino que assumem para si a tarefa de fazer da escola um lugar de formação de leitores é, primeiro, fazer com que os professores passem à categoria de leitores. De certa forma, as estratégias não diferem muito das que devem ser adotadas entre os estudantes: é preciso oferecer livros e criar momentos para que a leitura seja praticada de forma prazerosa e significativa.

Para Regina, não é necessário sequer muito investimento, considerando que, hoje, já existem políticas de distribuição de livros para as escolas, como o Plano Nacional Biblioteca da Escola e o próprio Plano Nacional do Livro Didático. Trata-se de racionalizar iniciativas de forma a aproveitar aquilo que a escola já pode oferecer para os alunos e para os professores. A pesquisadora da UFRGS dá um exemplo simples: os docentes podem ser incluídos como público-alvo das atividades que são, originalmente, pensadas para os alunos, como, por exemplo, a visita de um escritor à escola. "O professor é, ao mesmo tempo, interessado, parceiro e beneficiário dessas atividades", diz ela.
É preciso também abrir espaço nas rotinas escolares para que ele tenha oportunidade de expressar suas dificuldades com a leitura e expor suas necessidades. "Pode ser penosa a declaração 'eu tenho de dar aula de literatura, mas odeio esse negócio', mas tem de ser feito", afirma Regina. Este é um primeiro passo para desmistificar a leitura literária também entre os professores.
Um dos mitos a serem superados é o da dificuldade de ler o cânone. O professor, como qualquer outro leitor, não é obrigado a achar fácil ler Machado de Assis ou Guimarães Rosa, mas reconhecer essa dificuldade permite que ele procure maneiras de lidar com suas limitações. Outro é a superação da linha imaginária que separa a literatura infantojuvenil da literatura para adultos. Para além de simplesmente conhecer os textos que está dando para os alunos lerem, o professor precisa ler e gostar daquilo que está apresentando. Como lembra Regina, livro bom é para todo mundo.
Trajetórias de leitura

As experiências exitosas mostram que também a formação dos professores como mediadores de leitura precisa partir, justamente, do despertar dele para a importância da leitura na sua própria vida. E as estratégias para isso são, como apontou Regina, simples e semelhantes ao que é realizado com os alunos. Em Mogeiro, na Paraíba, foi montado um grupo permanente de formação de mediadores de leitura, chamado Doutores da Educação. As formações, previstas no Plano Municipal do Livro e da Leitura, são realizadas a cada três meses com todos os professores da rede municipal e incluem momentos para que os professores relatem suas experiências de leitura. "Eles contam que, a partir do momento em que começaram a ler para incentivar os alunos, eles também foram criando o gosto pela leitura", lembra a secretária municipal de Educação, Maria de Fátima Silveira.

A metodologia foi, em parte, herdada do projeto Ler: Prazer e Saber, realizado pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) em parceria com os institutos Camargo Corrêa e Alpargatas. Mogeiro participou do projeto, cujo objetivo era a formação de professores para atuarem como mediadores e agentes multiplicadores de ações de incentivo ao hábito da leitura. Grupos de educadores participaram de diferentes ciclos de formação ao longo de dois anos.
Segundo Maria Cecília Félix Godoy, pesquisadora do Cenpec, o grande desafio do projeto é motivar e incentivar o professor para que ele próprio "se encante pela leitura". "Se ele não for um leitor, não vai ser um bom mediador de leitura", diz. A primeira ação deve ser, justamente, retomar a trajetória de leitura desses professores, para que eles percebam como o livro e a literatura fazem parte da sua vida. "Muitos relatam que gostavam de ler e, de repente, passaram a não ler mais."
Feito isso, a formação aposta na apresentação de diversos gêneros aos educadores, tanto os que eles irão trabalhar com seus alunos, como aqueles ditos para adultos. O "medo dos autores difíceis" é uma das barreiras a serem quebradas. Para isso, os formadores do Cenpec selecionam os textos considerando o perfil dos participantes, de forma que eles se identifiquem com o tema ou os personagens da obra. Outra atividade é uma roda de empréstimo e apreciação: os participantes das oficinas de formação levam um livro que foi importante para eles e o apresentam aos demais. "Isso pode motivar outros professores a ler e também facilita o problema da aquisição de obras", comenta.
Difícil acesso

A dificuldade de acesso ao livro é para os professores, como para muitos brasileiros, uma questão permanente. As características do mercado livreiro, marcado pelas dificuldades de distribuição - como a falta de livrarias em muitos municípios - e o preço relativamente alto do livro, somam-se aos baixos salários docentes para colaborar com a multiplicação do professor não leitor. Zoara, do Instituto Pró-Livro, acredita que seria possível pensar em políticas para superar esta barreira, como um Vale-Livro, semelhante ao Vale-Cultura, criado pelo Ministério da Cultura.

Em Mogeiro, a Secretaria de Educação está apostando na ampliação do acervo das bibliotecas públicas e escolares, tentando incluir aí também obras de interesse dos professores. Maria de Fátima explica que, como o município é essencialmente rural, muitas das escolas estão distantes do centro e, portanto, da Biblioteca Municipal. Há também planos para que sejam montadas bibliotecas para os professores em cada escola.
Rodas de leitura

Além disso, outra estratégia simples foi adotada pela rede: o Horário de Trabalho Compartilhado conta com uma roda de leitura. "As supervisoras têm um levantamento de tudo que chega para as escolas, vários tipos de revista, material dos projetos do Ministério da Educação... Percebíamos que eles chegavam e ficavam num cantinho, só de enfeite", diz Maria de Fátima. "Nossa equipe técnica pensou: vamos bolar uma estratégia para mudar isso. E aí surgiu a ideia de, em cada Horário de Trabalho Compartilhado, um professor ou um grupo ficar responsável por ler aquele material e compartilhar aquela experiência - seja revista ou livro de história."

Essa permanente circulação de livros e outros materiais de leitura seduz os professores que, por sua vez, passam o prazer de ler adiante. Hoje, as rodas de leitura já são prática permanente em todas as escolas e algumas atividades ultrapassam os limites das salas de aula. Contação de história em praças e ações envolvendo as famílias também já são comuns. As rodas de leitura, aliás, são tão frequentes em Mogeiro que a secretaria incluiu no Plano Municipal do Livro e da Leitura um "Prêmio ao Professor Leitor", um reconhecimento aos educadores que mais promoverem atividades de incentivo à leitura. E, assim, a roda maior da leitura segue girando, com professores que aprendem a gostar de ler para ensinar a gostar de ler.

         
               Aceitarás o amor como eu o encaro?
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente 

Guarda-te a imagem, como um anteparo 
Contra estes móveis de banal presente. 
Tudo o que há de melhor e de mais raro 

Vive em teu corpo nu de adolescente, 
A perna assim jogada e o braço, o claro 
Olhar preso no meu, perdidamente. 

Não exijas mais nada. Não desejo 
Também mais nada, só te olhar, enquanto 
A realidade é simples, e isto apenas. 

Que grandeza... a evasão total do pejo 
Que nasce das imperfeições. O encanto 
Que nasce das adorações serenas.




         

Segunda canção de muito longe



Havia um corredor que fazia cotovelo:
Um mistério encanando com outro mistério, no escuro…
Mas vamos fechar os olhos
E pensar numa outra cousa…

Vamos ouvir o ruído cantado, o ruído arrastado das correntes no algibe,
Puxando a água fresca e profunda.
Havia no arco do algibe trepadeiras trêmulas.
Nós nos debruçávamos à borda, gritando os nomes uns dos outros,
E lá dentro as palavras ressoavam fortes, cavernosas como vozes de leões.

Nós éramos quatro, uma prima, dois negrinhos e eu.
Havia os azulejos, o muro do quintal, que limitava o mundo,
Uma paineira enorme e, sempre e cada vez mais, os grilos e as estrelas…
Havia todos os ruídos, todas as vozes daqueles tempos…
As lindas e absurdas cantigas, tia Tula ralhando os cachorros,
O chiar das chaleiras…

Onde andará agora o pince-nez da tia Tula
Que ela não achava nunca?
A pobre não chegou a terminar o Toutinegra do Moinho,
Que saía em folhetim no Correio do Povo!…
A última vez que a vi, ela ia dobrando aquele corredor escuro.
Ia encolhida, pequenininha, humilde. Seus passos não faziam ruído.
E ela nem se voltou para trás!